Juan e o mar

A tarde chegava viscosa como o oleio que se passa nos cascos dos navios no quintal do asilo Lavitan naquele final de semana, onde seus internos se encontrava com os parentes e amigos que vinham para a visita da semana. Um desses internos, agraciado com a presença dos familiares, era Juan Valdes, um antigo lobo do mar que agora estava em terra esperando seu tempo de ir fazer a ultima grande viagem. Seus netos eram como um balsamo para suas feridas abertas, pois o faziam pensar em juventude prematura no mar.

- Vovô! Conte-nos uma história, por favor. – Apesar de saber que muito provavelmente a frase havia sido imposta as crianças pelos seus pais, talvez por pena do pobre e velho homem que ele se tornara, decidiu que iria contar a melhor de todas as histórias, iria contar aquela que havia sido a mais real de todas. Sua boca se abriu lentamente enquanto seus olhos fitavam o vazio a sua frente...

“O mar espirava suas águas geladas em grandes borrifos quando as ondas batiam contra o nosso pequeno barco de pesca. Não era uma noite muito diferente de todas as outras que se tem dentro de um pesqueiro no meio do mediterrâneo, mas mesmo assim um medo tomava conta de meu corpo e fazia meus ossos, que ainda eram jovens com os seus, tremerem como se aquela fosse a ultima noite que eu poderia olhar para as estrelas, isso é claro, se não houvesse nuvens gigantescas acima de nós em um céu escuro como a fome. Eu realmente estava com medo, porque nem mesmo saí para fumar meu cigarro, fiquei dentro da cabine do comandante Perez olhando pela pequena escotilha o mar revolto e empesteando tudo com o cheiro do cigarro barato que sou obrigado a fumar quando estou no mar.

- Sabe o que essa tempestade quer dizer Juan? – o capitão falou comigo.
- Não senhor! – eu respondi
- A tempestade é só o aviso de que algo maior estar acontecendo lá embaixo. Porque tudo que acontece na terra tem haver com o mar, está tudo ligado numa só coisa. E se nas profundezas não há paz, na superfície não pode ser diferente. Temo que algo ruim acontece com nossa Catarina hoje.

Catarina era o nome de nosso barco, o capitão o havia dado em nome de uma das tantas mulheres que já amara. Juro que quase me borrei de medo quando houve as palavras agourentas do capitão, afinal ele era um homem velho e sábio, quase tão velho como eu sou hoje, e diferente do que é hoje em dia, na minha época as pessoas davam atenção ao que os velhos falam. Mas isso não importa agora! Fiquei mais um tempo na cabine com ele, ouvindo-o contar história sobre o mar, história sobre coisas tão tenebrosas que Deus fez questão de deixar sobre as águas poupando os homens. Eu me assustava fácil e o capitão contava as coisas como se as tivesse vivenciado e talvez até tivesse, ele pode ter estado em qualquer um desses barcos em outros mares nos quais nem seus grande navios modernos estiveram, talvez no Circulo Ártico. Mas isso também não importa mais!

Andei até a proa, que estava abandonada. Sinais de que a chuva estava próxima vinham até meus sentidos. Quando se é pescador por tanto tempo quando eu fui, acaba-se por aguçar os sentidos aos poucos: sua vista vai ficando mais sensível ao brilho escuro que não é o das ondas, seu nariz ao cheiro de coisa podre e velha que só existe na barriga das maiores baleias que se escondem nas profundezas e por ultimo sua orelha que capita o menor som de algo se chocando contra a água, e não falo do barco em si, falo de algo maior. Naquele momento eu havia percebi que não estávamos sozinhos, algo estava ao lado do barco, ou talvez envolta, ou talvez embaixo. Corri em direção ao alçapão que levava até o interior do barco, mas meus passos foram muito lentos mesmo eu sendo jovem. Quando estava na metade do caminho correndo pelo deque escorregadio um tentáculo enorme se levantou e caiu encima do barco, bloqueando minha passagem. Meu coração vinha na garganta, eu nunca havia visto algo parecido. O tentáculo ficou parado pulsando a minha frente, havia bocas de sucção como as de um grande polvo, como aqueles polvos gigantes das histórias que eu acabara de ouvir o capitão contar. Mas o barulho que a coisa havia feito fez com que todos corressem para o deque.

- Pelos Deuses dos mares! O que está havendo aqui? – Jordan, o segundo imediato gritou quando viu a coisa parada entre mim e a porta que leva para o interior do barco, onde ele estava, mas não havia com eu responder, um raio cruzou o céu fazendo o mar inteiro brilhar e ofuscando nossos olhos, quando pudemos abri-los o tentáculo já não estava mais entre nós dois.

Fui para a cabine do capitão junto com Jordan, achamos melhor não contar nada para ninguém a não ser o capitão, fiquei sabendo por ele que todos os outros estavam bêbados demais para ouvir o barulho que aquela coisa havia feito no deque. Contamos tudo para o capitão, que nos ouviu com toda a calma que se pode ter nessas situações, e no final apenas nos disse para esquecer aquilo tudo e irmos dormir.

- Mas nós não imaginamos! Eu realmente vi aquela coisa, era como o demônio que o senhor descreveu em sua história, o Kraken. – eu gritei, pois não queria que aquele homem me achasse um louco, porém foi a mesma coisa que assinar um atestado de louca, ele simplesmente mandou que eu fosse até minha cabine e arrumasse as minhas coisas, iria me deixar no próximo porto.

Dois dias depois estávamos em um pequeno porto na Grécia. O capitão me pagou como tivesse ido até o final da temporada com eles e invés de me mandar procurar um médico de loucos, disse apenas para eu me cuidar e tentar esquecer o que havia visto. “Algumas coisas não é bom serem vistas por olhos vivos. Se cuide de não conte histórias sobre o mar.” Foi o que ele me disse. Arrasado caminhei até um bar que ficava nas docas, eu tinha que beber algo para me despertar, e foi nesse momento que eu vi um homem jogado na sarjeta entre uma parede mijada e o chão sujo de peixe que dizia contar uma história incrível se alguém o pagasse uma bebida ou mais, fiquei com pena o do pobre coitado, naquela época ainda tinha pena das pessoas, e o levei para dentro do bar. Ele me contou a história de como havia sobrevivido ao ataque de um monstro marinho a duas noites atrás que havia atacado seu navio pesqueiro durante a tempestade e não havia poupado ninguém a não ser ele, isso depois de olhá-lo no fundo dos olhos com seus próprios olhos baços de peixe morto. Então eu soube naquele mesmo momento que eu não estivera louco e que nem havia visto uma ilusão.”

Juan acabou de contar sua história e ouviu as novidades da família: eles iriam se mudar e por isso só poderia vir uma vez por mês visitá-lo. Juan não deixou que eles percebessem o quanto ele ficou triste com a notícia, apenas disse que assim seria melhor para eles, afinal sabia como era ficar muito tempo em um mesmo lugar e detestava. No final da visita, quando todos já estavam no portão indo embora, Cortez, um dos netos, voltou correndo para fazer uma ultima pergunta para seu avô.

- Vovô, o senhor viu o mesmo um Kraken?
- Volte todos os finais de semana e eu lhe conto sobre a cidade perdida no mar, sobre as mulheres metade peixe e sobre o capitão que prendeu seu coração em uma caixa para nunca mais morrer. Agora vá e se lembre sempre de voltar.

Naquela noite Juan sonhou pela ultima vez, mas foi o sonho mais feliz de sua vida, pois sonhara com o mar e sua magia.

Tortura

Em uma sala escura e úmida, um homem está sentado em uma cadeira de ferro gelada. Com os olhos castanhos como avelã, perdidos na poeira olhando pela única ligação que aquele quadrilátero tem com o mundo exterior, uma pequena janela fechada por barrar de aço grosso como o pênis de um afro descendente. Sua pele exala o cheiro do suor velho e seco que ele produziu na noite anterior, o cheiro era uma mistura de medo com histeria. Mas ele mesmo não era capaz de sentir seu cheiro, pois tinha o nariz quebrado, dando ao seu rosto um ar cômico que só um palhaço de circo itinerante pode ter. ele olha mais uma vez por entre as barras de aço, mas nada vê além do céu cinza predestinando o dilúvio que viria daqui a pouco.

Seus pensamentos metrológicos são interrompidos pelo barulho da porta se abrindo atrás dele e de sua cadeira, mas preferiu não se virar e ver quem era. “Vai ser melhor se não puder ver o rosto desses canalhas”, pensou em sua mente, o único lugar que eles não podiam tocar com seus dedos imundos. Os passos foram se aproximando cada vez mais, e cada segundo que se passava entre uma passada e outra era para ele como se um milhão de anos atravessasse seus ossos e o fizessem lembrar-se de cada coisa que havia vivido até aquele maldito momento. Sem fazer força, foi se lembrando de como havia chagado ali, uma emboscada no campo de batalha em alguma região da Europa velha, talvez no campo de algum fazendeiro que um dia cultivou cereais onde agora a maior guerra de todos os tempo estava sendo travada. Não que ele sentisse medo ou lembrar daqueles vinte ou trinta dias em que foi submetido as piores técnicas de tortura que a mente humana pode imaginar, medo não era nada em um lugar como aquele. Talvez nem mesmo a raiva era algo que o pudesse tomar agora. O único sentimento que se passava por sua cabeça era o cansaço, definitivamente ele estava cansado de tudo aquilo, de toda aquele guerra, que na verdade não podia entender muito bem o motivo.

Por final, só restava relaxar os músculos e partir para o outro mundo que havia criado em sua mente para fugir dos momentos em que seu corpo sofria. Foi aos poucos largando os sentidos que o prendiam a esse mundo de carne e concreto, esperando que lá, na cidade de vidro, perto de seu córtex central, sua espesa o estivesse esperando como na noite anterior e seria bom que ela tivesse colocado a crianças para dormir mais cedo, essa noite ele queria “aproveitar” as estrelas que estava no céu para fazer amor na varanda. Mas mais uma vez seus pensamentos foram interrompidos e dessa vez não era o barulho da porta se abrindo. Uma voz o chamava de volta para a realidade e não era a voz de um daqueles nazistas de merda, era uma voz amiga dizendo: “Acorda capitão! Sou eu o Cortez. Agente veio te buscar! Acorda porra!” Então ele sorriu, porque sabia que a hora de voltar para sua vida sem esposa nem filhos havia chagado.

***

só uma pequena pausa antes de acabar de postar o conto Lotus.